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= Temos Uma Revolução Colorida no Brasil?
José Geraldo Gouvêa <jggouvea@gmail.com>
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[, Siddharta Gautama]
""
Não acrediteis em algo apenas por ouvir dizer. Não acrediteis nas
tradições só porque foram transmitidas desde muitas gerações.
Não acrediteis em algo só por ser dito e repetido por muitas
pessoas. Não acrediteis em algo só pelo testemunho de um sábio
venerável. Não acrediteis em algo só porque as probabilidades
o favorecem ou porque o costume vos faz tê-lo por verdade. Não
acrediteis no que imaginastes pensando que um ser superior o
revelou. Não acrediteis em coisa alguma apenas pela autoridade de
vossos anciães ou mestres. Mas, aquilo que vós mesmos
experimentastes, provastes e reconhecestes como verdadeiro, o
que corresponde ao vosso bem e ao bem dos outros, isto, sim,
deveis aceitar, e, por isso, moldar a vossa conduta.
""
Bom dia para você, reacionário de direita travestido de jovem
anarquista, que saiu às ruas nesse fim de semana querendo causar
impacto. Devia ter ouvido o Humberto Gessinger e feito o
pacto.footnote:["Por isso, garota, façamos um pacto de não usar a
highway para causar impacto." (Gessinger, H. "Infinita Highway". In:
Longe Demais das Capitais. BMG/Ariola: 1987.] Você está, conscientemente
ou não, fazendo seu trabalho de formiguinha na preparação do caos. Eu
sou astrólogo, vocês precisam acreditar em mim. Eu sou astrólogo e
conheço a história do princípio ao fim.footnote:[Seixas, Raul. "Al
Capone". In: Krig-Há, Bandolo!. EMI/1973.]
NOTE: Este texto é uma adaptação de uma resposta que dei ao site
Quora.com. Para benefício do leitor brasileiro eu reordenei algumas
seções e acrescentei notas de rodapé.
CAUTION: Esta será a mãe das respostas epicamente longas. Por isso
devo começar com um _lead_ adequado: *Tudo indica que há mesmo uma
"revolução colorida" acontecendo no Brasil, apenas não sabemos ainda
até onde vai e nem quem estará no controle no fim do processo.
Esta afirmação é cautelosa, porém. Todos nós, na esquerda, mais ou menos
sabemos as respostas, apenas estamos um pouco cautelosos porque não
gostamos de dizer besteiras cedo, outros sabem mas preferem fingir
ceticismo por não terem provas e outros, esses são os piores, acham que
as pessoas vão gostar de seu número depois que o circo pegar fogo.
TIP: Este é um assunto muito difícil e uma resposta boa
requer uma montanha de pesquisa. Esta resposta é uma tentativa de
entender o que está acontecendo, com base nos dados que eu já tenho.
Gostaria de contar com o _feedback_ dos leitores para continuar montando
o quebra-cabeças.
WARNING: ESTA RESPOSTA INCLUI IMAGENS DE ESTUPIDEZ EXPLÍCITA E
REACIONARISMO GALOPANTE QUE PODERÃO CHOCAR OS MAIS SENSÍVEIS.
AVISO AOS FRÁGEIS DE CORAÇÃO QUE NÃO LEIAM, OU PELO MENOS LEIAM
DESATIVANDO O CARREGAMENTO DE IMAGENS NO NAVEGADOR.
[[o-que-é-uma-revolução-colorida]]
== O Que É uma Revolução Colorida?
[, Evo Morales]
""
O único país do mundo onde nunca haverá um golpe de estado são os
Estados Unidos, porque lá não há embaixada dos Estados Unidos.
""
Precisamos começar explicando, porque o leitor em geral não deve saber.
Afinal, se o brasileiro médio soubesse dessas coisas ele não seria tão
facilmente manipulado.
image:revcor.jpg[itle="Símbolos de algumas das revoluções coloridas que
ocorreram no início do milênio", role="right" width=400]
"Revolução Colorida" é o nome genérico pelo qual as esquerdas do mundo
designaram uma categoria de processos de mudança de regime que parecem
seguir um padrão. Referido padrão inclui:
1. O início é baseado em algum tipo de difusão pelas mídias sociais.
2. O pretexto varia, mas está relacionado a excessivo autoritarismo
(Sérvia, Quirguistão, Rússia, Irã, Tunísia, Egito), corrupção (Geórgia,
Rússia, Tunísia, Egito) ou fraudes eleitorais (Irã, Ucrânia). Em geral
os três pretextos são usados simultaneamente, predominando no fim aquele
com o qual o povo se identifique mais.
3. A adoção de símbolos tradicionalmente de esquerda (punho cerrado,
cor preta, slogans).
4. A adoção de uma ou mais cores como símbolo do movimento, nem sempre
as mesmas cores nacionais, mas às vezes sim. Alguns desses movimentos
ficaram conhecidos por cores (preto na Sérvia, laranja na Ucrânia,
cor-de-rosa na Geórgia, amarelo no Quirguistão, verde no Irã) ou por
serem associados a flores (jasmim na Tunísia, cedro no Líbano, lótus no
Egito).
5. O aparecimento de movimentos paramilitares de direita como linha
auxiliar.
6. Ênfase em lideranças jovens e descartáveis (trocadas rapidamente)
que, às vezes, convergem para um líder político tradicional (Yushenko,
na Ucrânia, Sakhashvili na Geórgia, Rafik Hariri no Líbano, Hussein
Mussawi no Irã). Esse líder, se não for reprimido pelo próprio regime,
será morto por pessoas desconhecidas (Hariri) ou sofrerá algum atentado
(Yushenko).
7. O fomento de separatistas para justificar um endurecimento do estado
na fase final ou para realmente criar uma situação de instabilidade e
destruir o país.
8. A cooptação de estruturas do estado por elementos para-estatais.
9. A ocorrência de um episódio de violência emblemático e que aumenta a
comoção nacional e facilita a ruptura institucional (Ucrânia, Sérvia,
Geórgia, Quirguistão, Líbano, Líbia, Tunísia).
10. A tomada do poder por um governo de direita, que logo se move ainda
mais para a direita, e começa uma política de total alinhamento com os
Estados Unidos ou, pelo menos, de relativa neutralidade.
A conclusão definitiva requer a produção desta ligação essencial entre o
que se vê no Brasil e o que se viu nessas revoluções até agora. Não
importa realmente o que eu venha a argumentar aqui, o que é essencial é
documentar de toda forma o que está acontecendo, e recuperar o que
aconteceu nas últimas semanas e meses, talvez anos, para pormos os
pingos nos is e concluir se o nosso caso é idêntico ou apenas semelhante
ao que houve naqueles países.
Hoje sabemos, com certeza, que o governo dos Estados Unidos estava
envolvido na derrubada de João Goulart em 1964. Não precisaremos esperar
quarenta anos para entendermos a crise brasileira de 2016 se
conseguirmos conectar corretamente os pontos.
Em 2013 eu escrevi um artigo para o meu blog de política
(atualmente paralisado) chamado http://arapucas.letraseletricas.blog.br/revolutions-inc[Revolutions,
Inc.], que foi a minha primeira tentativa de entender o
fenômeno das revoluções coloridas.
image:otpor.png[title="Símbolo do _Otpor_, movimento responsável
pela queda de Slobodan Milosevic, na Sérvia, em 2000",
width=128, role="left"]
A adoção de símbolos de fácil identificação é uma das estratégias de
propaganda utilizadas nas "revoluções coloridas". Este é o símbolo do
movimento popular que derrubou o presidente da Sérvia, Slobodan
Milosevic, em 2000. Nós o reencontraremos em outros contextos, mas por
enquanto preste atenção ao símbolo do punho fechado (normalmente usado
por anarquistas ou socialistas) e na fonética do nome _otpor_, que
significa "resistência" em sérvo-croata, mas soa parecido com a palavra
inglesa _outpour_, que significa "extravasar". Observe também o uso do
ponto de exclamação, que empresta mais ênfase e gravidade ao símbolo.
Há um modelo pré-fabricado de revolução. Ele foi desenvolvido a partir
da observação das revoluções historicamente ocorridas e da adoção das
ideias de Joseph Goebbels, ministro de propaganda do governo de Adolf
Hitler, na Alemanha. Foi aperfeiçoado a partir de cuidadosas pesquisas
sobre neurologia e psicologia, incluindo o famoso Projeto MK Ultra, da
CIA, e descamba nas revoluções coloridas e na "primavera árabe", que são
uma coisa só.
Este modelo de revolução inclui a idealização da juventude, não apenas
porque se espera que a juventude seja revolucionária, mas porque são
justamente os jovens os que mais facilmente engolem manipulações
midiáticas, por serem imaturos, mal informados (ainda mais em um país
com um sistema educacional _intencionalmente precário_) e cheios de
idealismo, além de terem uma tendência natural a se agregarem em torno
de qualquer coisa que lhes dê um senso de pertencimento.footnote:[É
assim que a moda, maior laboratório das revoluções coloridas, tem
funcionado desde seu surgimento.]
Pessoas jovens são recrutadas com a promessa de aparecerem e se tornarem
líderes de massas (isso quando não são simplesmente seduzidas por
dinheiro). Com microfones postos diante de suas bocas inexperientes,
elas dizem bobagens e platitudes que estão no nível das massas que se
quer atingir. Este texto, por exemplo, terá um efeito minúsculo (além de
ofender a alguns leitores) porque ele não é suficientemente raso para
atingir uma multidão (segundo o conceito de Goebbels). Você pode se
ofender com ele e dar razão a Goebbels, ou pode, mesmo ele sendo grande
e complexo, tentar entendê-lo e acompanhá-lo, desmentindo o cinismo do
famoso nazista. Sim, eu sei, a puta que pariu é logo ali, já vou.
Em geral as revoluções coloridas são bem sucedidas porque atacam
governos fracos. Os governos enfraquecem porque estão há muito tempo no
poder e se perderam (Ghaddafi na Líbia, Shevardnadze na Geórgia,
Maduro/Chávez na Venezuela, Askar Akayev no Quirguistão), porque são
notoriamente corruptos (Zine Abdine ben-Ali na Tunísia, Yanukovich na
Ucrânia), porque são cruéis demais, mas não tem suficiente poder militar
e policial para se defender (Askar Akayev no Quirguistão, Bashar Assad
na Síria, Ben Ali na Tunísia) ou porque são simplesmente estúpidos
demais para se precaverem (Dilma Rousseff). Quando a revolução colorida
ataca um governo forte (no sentido de coeso, com uma inteligência
militar operante e sem infiltrações de quintas-colunas) ela tende a
fracassar (Zubr na Bielorrúsia e Oborona na Rússia, além da "Revolução
Verde" no Irã).
No entanto, apesar das falhas dos regimes atacados, os objetivos reais
são geopolíticos, e não locais. No caso da Sérvia, por exemplo, o
sucesso do movimento Otpor abriu caminho para a independência de
Kossovo, criando um protetorado da OTAN nos Bálcãs, região onde a
influência russa foi sempre forte historicamente (movimento Pan-Eslavo e
reivindicação de supremacia da Igreja Ortodoxa Russa). Salvar os
kossovares de um genocídio foi um benefício real, mas apenas um efeito
colateral deste objetivo geopolítico (muitos outros genocídios ocorrem
no resto do mundo sem que ninguém mova uma palha).
Esses movimentos sempre são financiados, treinados e orientados pela CIA
e por entidades privadas a serviço do grande capital estadunidense,
entre as quais se destacam a USAID (já atuante nos golpes
latino-americanos dos anos 1960 e 1970), o National Endowment for
Democracy, o Centro Americano para a Solidariedade Trabalhista
Internacional, o European Endowment for Democracy, o Centro para
Assistência Internacional em Comunicação e a própria CIA, quando não
opera através destes ou de outros nomes de fachada. Entidades privadas
como a Heritage Foundation, o American Enterprise Intitute e o Open
Society Institute são muito atuantes nesse contexto porque não usam
dinheiro do contribuinte americano e, por isso, podem agir mais
livremente.
Todos esses atuaram em todas as revoluções coloridas, de uma forma ou de
outra.
image:kmara.jpg[title="Símbolo da Revolução Cor-de-Rosa, da Geórgia, em 2003",
width=128, role="left"]
Depois da Sérvia, a cor da moda passou a ser o preto e o rosa, na
Geórgia, em 2003, onde um político nascido nos EUA, Mikhail Sakhashvili,
foi alçado ao poder em meio a uma quase guerra civil, que resultou da
derrubada de Eduard Shevardnadze, um político experiente que havia sido
ministro das relações exteriores da URSS e que havia, por sua vez,
derrubado um regime pró-EUA liderado por Zviad Gamsakhurdia, em 1993.
O nome do movimento georgiano era _Kmara!_, que significa "basta". O
símbolo foi o mesmo da Sérvia e a presença de "conselheiros" sérvios
entre os revolucionários era algo que ninguém escondia.
image:pora.png[title="Símbolo da revolução laranja, da Ucrânia, em 2004",
width=128, role="left"]
Logo depois o laranja se tornou o novo preto em 2004 e pela primeira vez
em décadas a política internacional discutiu venenos. Aparentemente
haviam fraudado as eleições da Ucrânia (ou não, depende de quem se
pergunta) e o candidato que seria derrotado, Yushenko, acabou envenenado
com dioxina, o que desfigurou o seu rosto, ao menos temporariamente. Com
a acusação de que teria sido envenenado pelo FSB (serviço secreto
russo), Yushenko ganhou a eleição e tentou se afastar de Moscou.
O nome do movimento era _Pora!_, que significa "é hora!" O símbolo foi
modificado, agora é um sol nascente.
image:kelkel.jpg[title="Símbolo da Revolução da Tulipa, de 2005, no
Quirguistão," width=128, role="left"]
Em 2005 o presidente dinossauro Askar Akayev foi derrubado no
Quirguistão, em um movimento chamado _KelKel_ ("renascença") e que tinha
por símbolo o sol nascente e a cor amarela. Porém o símbolo original não
era esse. Você o vê abaixo, junto a outros símbolos de revoluções
coloridas, algumas que não deram certo.
A associação desses movimentos à internet e às mídias sociais, mesmo no
Quirguistão, onde poucas pessoas sabiam como usar computadores, ajudou a
emprestar a esses movimentos uma aparência de modernidade, embora
ideologicamente eles não trouxessem nenhuma novidade.
Ocorreu, então, uma sequência de quedas de regime, na esteira desses
levantes, o que fez com que os governos mais atentos e competentes (duas
coisas que nada tem a ver com democracia ou honestidade ou com a minha
preferência por viver lá, por favor) captaram a mensagem que soprava com
os ventos e começaram a bloquear os caminhos pelos quais fluía a
conspiração. Eles prenderam lideranças e agitadores que tinham em algum
momento ido aos Estados Unidos fazer "cursos de liderança" ou
"intercâmbios culturais", identificaram partidos e entidades que
replicavam ideologias semelhantes e, por fim, dissolveram organizações
não governamentais que recebiam fundos do exterior, em alguns casos
prendendo cidadãos estrangeiros que as orientavam.
image:colorrev.jpg["Símbolos de diversos grupos que incitaram
revoluções coloridas em vários países da Europa Oriental e Oriente
Médio", width=384, role="right"]
Esta ação, ocorrida na Rússia, na Bielorrússia, no Irã, na China e em
vários outros lugares, impediu que lá surgissem ou se criassem essas
revoluções coloridas, o que serviu de confirmação empírica para o
entendimento de que tais revoluções eram artificialmente criadas e
remotamente controladas. Fossem movimentos orgânicos das respectivas
sociedades, não teriam refluído tão fácil apenas com o corte de linhas
de financiamento e a prisão de alguns líderes.
Nesse momento começou a segunda iteração das revoluções coloridas, que
recebeu o nome de "primavera árabe". Além da mudança da identificação,
que deixa de ser uma cor para ser uma flor, ocorrem ligeiras mudanças na
organização. Agora o processo é mais descentralizado, o dinheiro já não
flui diretamente do exterior para algumas poucas organizações, mas
percorre caminhos tortuosos até chegar ao seu destino, e já não há mais
intercâmbio de lideranças, a fim de se criar com mais força a ideia de
legitimidade local do movimento. Esta segunda onda de revoluções
coloridas se caracteriza pela necessidade de um acontecimento chocante
para acender o pavio da revolta, uma vez que ocorrem em países onde o
acesso à internet é mais restrito e o ciclo de vida da propaganda é mais
longo. No Líbano isso ocorreu com o assassinato do primeiro-ministro
Rafik Hariri. Na Tunísia foi a auto-imolação de um jovem comerciante que
se sentiu humilhado por uma policial.
Em alguns casos é quase impossível enxergar a manipulação porque
praticamente não existem evidências superficiais de envolvimento
externo. Foi o caso, por exemplo, das revoluções da Tunísia e do Egito.
Não é fácil de explicar porque a CIA financiaria a derrubada de dois
regimes aliados de Washington, e por isso muita gente crê que essas
revoltas tenham sido espontâneas. É possível que sim, mas _é também
possível que estas revoltas tenham ocorrido por motivos mais
maquiavélicos:_
1. Dar uma aparência de legitimidade às revoluções coloridas, pois todo
mundo já estava achando estranho que elas só ocorressem em países cujos
regimes eram adversos aos EUA.
2. Servir de alerta aos regimes aliados dos EUA, para que reforçassem a
sua fidelidade, pois poderiam ser vítimas de revoluções coloridas
também, caso não se mostrassem mais úteis.
3. Ensaiar e desenvolver novas técnicas de mudança de regime em
condições reais, visto que as técnicas inicialmente empregadas com
sucesso precisavam de adaptações.
4. Desestabilizar o mundo árabe, onde o sentimento anti-americano vem
crescendo há décadas, por causa do apoio de Washington ao Estado de
Israel.
O elo final desta análise é o "Anonymous", um grupo informal de
auto-intitulados "operadores de segurança" que se formou na internet com
o objetivo de desnudar a Igreja da Cientologia.
image:anon.jpg["Imagem de divulgação do coletivo 'Anonymous'",
width=256, role="right"]
A força ideológica do "Anonymous" é significativa, pois ele incorpora
vários _memes_ da modernidade (na definição de Richard Dawkins, não na
sua compreensão abastardada que vemos na internet):
1. É um fenômeno "da internet", o que lhe dá uma aparência de
modernidade.
2. É um grupo que se pretende "subversivo", o que atrai a simpatia dos
jovens rebeldes.
3. Por se utilizar de meios tecnológicos para seus objetivos, apela
fortemente aos jovens e inspira fascínio nos mais velhos.
4. Ao oferecer uma suposta "anonimidade" aos seus membros, dá aos
jovens comuns a possibilidade, ou a ilusão, de que podem colocar uma
máscara no rosto e aparecerem na internet como uma temível força
política.
Apesar disso, o "Anonymous" possui vários problemas, que não foram
detectados pelos seus adeptos:
1. Apesar de "descentralizado", o discurso político é bastante
uniforme, sugerindo uma instância coordenadora.
2. Boa parte dos que aderiram às campanhas do "Anonymous" utilizaram
softwares (como o LOIC -- _Low Orbit Ion Cannon_) que não entendiam e
que possivelmente, além de fazer o que deviam fazer, também capturavam
informações dos usuários e/ou usavam os seus _desktops_ para computar
dados de interesse de quem estivesse por trás do grupo.
3. Em momento algum o "Anonymous" se voltou contra o real centro do
poder mundial (os Estados Unidos), e quando ameaçou fazê-lo foi
desbaratado e os seus principais líderes foram forçados a cooperar com o
FBI.
[[evolução-gradual-desta-compreensão]]
== Evolução Gradual Desta Compreensão
[, Anônimo]
""
O inacreditável não pode ser descartado como explicação se o
perfeitamente crível parece impossível.
""
Esta resposta não é o produto de meras horas de reflexão. Estas ideias
vem sendo elaboradas desde 2011 e foram publicadas pela primeira vez
desde 2012. Esta é a sequência de desenvolvimento.
1. Em 2010, o blog esquerdista britânico _Third Estate_ publicou um
artigo chamado
http://thethirdestate.net/2010/03/zeitgeist-exposed[Zeitgeist
Exposed], que eu traduzi e publiquei no meu blog. Este artigo me chamou
a atenção para as implicações ideológicas do filme, que até então eu
apenas considerava uma tentativa mal-acochambrada de criar polêmica.
2. Mais ou menos na mesma época eu escrevi um artigo para o meu blog,
chamado
http://arapucas.letraseletricas.blog.br/revolutions-inc[Revolutions,
Inc.], no qual analisei superficialmente o fenômeno das revoluções
coloridas. Um resumo de minhas conclusões foi usado na seção anterior.
3. Um pouco depois eu escrevi um outro texto, em duas partes, chamado
"Sobre os Malefícios Mentais do Anarcomiguxismo",
http://arapucas.letraseletricas.blog.br/sobre-os-maleficios-mentais-do-anarcomiguxismo-1[Parte
1] e
http://arapucas.letraseletricas.blog.br/sobre-os-maleficios-mentais-do-anarcomiguxismo-2[Parte
2], nos quais analisei os primeiros sinais evidentes de que a ideologia
anarco-capitalista, que estava se popularizando no Brasil, era um tipo
de discurso de ódio ideológico, com sério potencial de dano à
democracia.
4. Prosseguindo na trilha da análise das revoluções coloridas, escrevi
http://arapucas.letraseletricas.blog.br/acabou-a-era-das-revolucoes[Acabou
a Era das Revoluções], onde afirmei que a revolução como
tradicionalmente é entendida pela esquerda é um fenômeno obsoleto e que
agora os movimentos populares são engendrados de forma científica pelo
próprio status quo. image:zagallo.jpg["Texto do promotor Rogério Zagallo instando policiais a
matarem manifestantes", role="right", width="256"]
5. Em 2013, no auge da tensão dos protestos contra o governo, escrevi
http://arapucas.letraseletricas.blog.br/quando-a-justica-odeia[Quando a
Justiça Odeia], extrapolando o caso de um procurador do Ministério
Público que utilizou mídias sociais para aconselhar policiais a matarem
manifestantes, pois ele lhes daria cobertura. Para mim, naquele momento
ficou evidente que um setor significativo do Judiciário estaria
contaminado de ideologia de extrema direita e anti-popular, o que
ameaçava a lisura do processo democrático.
6. Por fim, em
http://arapucas.letraseletricas.blog.br/a-conspiracao-anarcomiguxa[A
Conspiração Anarcomiguxa] eu finalmente delineei uma solução de
continuidade entre diversos fenômenos das redes sociais no Brasil, desde
o Movimento Zeitgeist até os mais recentes desdobramentos, que já
permitiam prever uma "revolução colorida" em gestação.
7. Em 2015 eu passei a colaborar no http://www.quora.com[Quora] e ali
tive a oportunidade de fazer duas importantes respostas sobre a situação
política brasileira:
_https://www.quora.com/How-did-the-Dilma-government-in-Brazil-go-from-solid-to-potentially-non-viable-in-5-years/answer/Jose-Geraldo-Gouvea[How
Did the Dilma Government Go from Solid to Potentially Non-Viable in 5
Years]_ e
_https://www.quora.com/Who-is-financing-the-March-15th-protests-organization-in-Brazil/answer/Jose-Geraldo-Gouvea[Who
Is Financing the March 15th Protests in Brazil]_.
[[o-governo-dilma-acabou]]
== O Governo Dilma Acabou
A política da América Latina é sempre cíclica: há momentos em que os
países avançam, e momentos em que são empurrados para trás novamente.
Nos momentos de recuo os governos populares devem escolher entre recuar
taticamente, tentar a revolução ou recuar desastrosamente. Nem sempre as
três opções são possíveis.
A primeira coisa a se dizer é que o governo Dilma fracassou, e fracassou
redondamente. Não serei muito rigoroso com ela, porque seria
praticamente impossível, dadas as circunstâncias de nosso sistema
político, que um governo de esquerda não viesse a fracassar no longo
prazo. O presidencialismo é um sistema inerentemente instável --- a
única nação estável do mundo que o adota são os Estados Unidos, e isso
porque lá existem salvaguardas que aqui não existem (como uma sociedade
civil forte) e o país não está sujeito a pressões que afetam as demais
nações do mundo (necessidade de manter superavit fiscal e de negociar
política econômica e política externa com... os Estados Unidos).
A sociedade americana é madura o suficiente para funcionar em piloto
automático sem interferência real dos governantes. O próprio governo é
constituído majoritariamente de burocratas de carreira que mantêm a
máquina funcionando sem que alguém tenha que apertar botões. Além disso,
todos os principais agentes políticos e econômicos americanos têm uma
fidelidade uniforme ao país, diferentemente dos demais países da América
Latina, onde sempre há uma classe de políticos e de empresários que
segue a cantilena que interessa ao capitalismo internacional. Como
consequência desta diferença, um presidente americano fraco significa
que os Estados Unidos permanecerão estáveis e que o resto do mundo terá
relativa autonomia pare decidir o próprio destino, enquanto um
presidente brasileiro fraco significa que o país se descontrolará em
todos os aspectos e ficará exposto a manipulações originárias do
exterior.
Se queremos destruir o ranço autoritário da política latino-americana,
devíamos começar abolindo o presidencialismo, pois no seio desse sistema
de governo, a estabilidade dos países periféricos só pode ser conseguida
através de um "líder forte", o que tende a produzir autoritarismos na
esquerda e reações fascistas quando os regimes de esquerda enfraquecem.
Mesmo assim relativizando sua falha, a verdade é que o governo Dilma é
um dos piores que o Brasil já teve, sob vários aspectos. Não por causa
exatamente dos objetivos desejados e atingidos (o Plano de Aceleração do
Crescimento, o Mais Médicos e a queda da taxa de juros foram medidas
necessárias e quase revolucionárias), mas por causa do gerenciamento das
relações políticas no seio do próprio governo e de sua dificuldade para
tomar decisões ágeis em momentos de crise. O governo Dilma é um dos
piores não em governar propriamente, mas em singrar estável no meio da
tempestade. Dilma é excessivamente técnica, e lhe falta malícia
política. Ela tem sido lenta para tomar medidas importantes (entre elas
demitir José Eduardo Cardozo e Aluízio Mercadante) e rápida demais para
aceitar recuos (como a nomeação de Kátia Abreu para o Ministério da
Agricultura). Sua oratória é também um problema sério, que a torna
vulnerável, dependente de porta-vozes que não a expressam corretamente e
que nem sempre parecem confiáveis (como, principalmente, José Eduardo
Cardozo). Dilma sempre parece, ao falar, uma atriz mal ensaiada
interpretando Shakespeare. Suas hesitações, seu gaguejar e suas idas e
vindas ao tentar falar de improviso passam uma impressão de pena, não de
respeito. Os seus próprios fãs às vezes ficam embaraçados com suas
gafes.
Esses problemas de Dilma são realmente dignos de pena em um nível
pessoal e de certa forma até atraem simpatia, por torná-la uma mulher
mais próxima da mulher comum, mas se tornam uma limitação significativa
em momentos de crise, quando os adversários falam com desenvoltura. Há
anos o Brasil vem tentando manter afastada a crise internacional, mas a
situação se deteriora e o governo não parece capaz de soluções
imaginativas. O que Dilma tem feito, na área econômica, é basicamente
uma continuidade das medidas de Lula, e tudo o que tentou fazer fora
dessa linha redundou em perigoso fracasso (gerando aumento de inflação)
ou em forte oposição (redução da SELIC).
Como a crise não amainou, o Brasil foi se aproximando do fim da corda e
Rousseff cada vez teve menos terreno para ceder ou alternativas entre as
quais escolher. Sua lentidão para tomar decisões e sua tendência a
depender de pessoas inconfiáveis ou incompetentes afeta seriamente sua
capacidade de agir, forçando-a a tomar as decisões duras somente quando
já é muito tarde. O exemplo emblemático disso é a nomeação de Lula como
Ministro.
Ventila-se a possibilidade de tal nomeação desde o início de 2015,
diante do quadro desfavorável que o governo enfrentaria na Câmara.
Aquele era o momento em que Dilma deveria ter recorrido a Lula, ainda
que informalmente, para que ele a ajudasse a traçar uma estratégia e
para tentar barrar a eleição de Eduardo Cunha, que tanto mal fez ao
Brasil. Não se sabe se o convite foi feito e Lula o recusou, se Lula se
ofereceu e ela não o aceitou ou se sequer foi cogitado pelas partes.
Isso não importa, de fato. O que importa é que naquele momento a
nomeação de Lula teria tido um efeito positivo para o governo. Agora,
quando Cunha já defecou o que tinha que defecar, Lula está sendo
investigado e a crise institucional já se aprofundou, a nomeação acaba
por trazer mais problemas do que soluções.
Diante disso, surgiu uma excelente oportunidade para a fase final do
processo de mudança de regime, que já vinha sendo preparado desde pelo
menos 2011. Ainda não se sabe, e talvez só saibamos em um futuro
distante, se as fases anteriores do processo vinham sendo conduzidas de
forma semi-autônoma pelos _think-tanks_ conservadores e a CIA só passou
a interferir tardiamente, ou se havia desde o início uma deliberação de
Washington nesse sentido. Isso tampouco é relevante. O que nos importa é
que o processo foi longo porque o Brasil, sendo grande e heterogêneo,
torna difícil a lavagem cerebral de todo o povo. Nesse artigo procuro
demonstrar como foi conduzido um processo de doutrinação ideológica da
sociedade brasileira, de forma a popularizar doutrinas divisivas que
eventualmente fraturaram a base social do governo e expuseram um flanco
que a CIA passou a explorar para tentar derrubar o governo.
[[os-ovos-da-serpente]]
== Os Ovos da Serpente
Mesmo mantendo um razoável ceticismo, não se deve excluir de antemão a
possibilidade de que seja verdade aquilo que parece improvável. Pelo
menos não enquanto não surgir uma explicação funcional que recorra
apenas ao que é possível. A navalha de Occam, quando aplicada de forma
indiscriminada, funciona mais como um obstáculo do que como um guia. Foi
utilizando um princípio semelhante que Aristóteles desconsiderou a
teoria atômica de Demócrito e propôs sua versão simples e cética dos
quatro elementos. Com isso e mais a sua autoridade, atrasou o
desenvolvimento da química por milênios.
image:zeitgeist.jpg["Imagem promocional do filme Zeitgeist", role="right",
width="256"]
A primeira vez em que notei algo de podre no reino da Dinamarca foi em
2012. Foi quando percebi a conexão entre o filme _Zeitgeist_, o "Projeto
Vênus", a ideia das _Charter Cities_ (então propostas em Honduras) e a
difusão das ideias da Escola Austríaca de economia no Brasil. Tudo isso
aliado ao recrutamento de pessoas ativas nas redes sociais para propagar
essas ideias conservadoras, americanófilas e reacionárias.
Foi o momento em que enxerguei a "Conspiração Anarcomiguxa", que assim
batizei porque ela incorpora dois elementos aparentemente
contraditórios: o elitismo tecnológico de pessoas supostamente
"descoladas" e doutrinas econômicas e políticas de fácil consumo que
apelavam para os sentimentos reacionários e autoritários da psique
brasileira.
O movimento começou quando pessoas influentes da internet, ainda no
tempo do Orkut, começaram a difundir antissemitismo, economia austríaca,
anarco-capitalismo, minarquismo, individualismo exacerbado,
anti-comunismo raivoso, opiniões radicalmente anti-povo e anti-esquerda,
separatismos, rivalidades regionais e ódio de classe.
image:venus.jpg["Imagem promocional do _Projeto Vênus_", role="left",
width=256]
O "Movimento Zeitgeist" se formou a partir do primeiro filme e das
suas duas sequências, intituladas, respectivamente, _Zeitgeist: Addendum_
e _Zeitgeist: Moving Forward_. A partir do diagnóstico sombrio oferecido
pelo primeiro filme, suas continuações propunham uma solução, a que
chamaram de "economia baseada em recursos", que foi inspirada no
"Projeto Vênus", uma utopia tecnocrática e ecologicamente correta
de Jacque Fresco e Roxanne Meadows.
"O "Projeto Vênus" propõe uma visão alternativa do que o futuro pode ser
se aplicarmos o que já sabemos a fim de obter uma nova e sustentável
civilização mundial. Ele nos convoca a um redesenho simplificado de
nossa cultura no qual as antigas inadequações da guerra, da pobreza,
da fome, da dívida e do sofrimento humano desnecessário são vistas
não somente como evitáveis, mas como totalmente inaceitáveis. Qualquer
coisa menos que ele resultará na continuidade do mesmo catálogo de
problemas inerente ao mundo de hoje."
-- Jacque Fresco, Apresentação do Projeto Vênus
image:nossolar.jpg["Cartaz promocional do filme espírita "Nosso Lar"",
role="right", width=256]
Em suma: O "Projeto Vênus" é uma espécie de religião secular, não
muito diferente de um socialismo utópico e algo ingênuo, _talvez
desenvolvido para substituir outras espécies de utopias políticas
de transcendência, como o marxismo._ O tipo de linguajar empregado
nas apresentações iniciais é bastante próximo ao do proselitismo
religioso comum, ainda que os que se iniciem encontrem algo diferente.
Digo que é um movimento de caráter quase religioso porque vários dos
termos normalmente empregados por pregadores místicos _new age_ são
repetidos pelos divulgadores: "_We propose a fresh, holistic
approach_..." e "_alternative vision unlike any social system that
has gone before_".
image:cci.jpg[title="Imagem promocional do conceito de "Charter Cities", na
qual se lê: "Aviso, Planejamento de 1000 km², Construção de Cidade
Livre, Investidores Ocidentais Bem-Vindos, Democracia Garantida"",
role="right", width="256"]
Tudo isso é muito velho. No caso do filme Zeitgeist original, é a
testada e aprovada receita do fascismo e suas estratégias de propaganda
de massas. No caso do Projeto Vênus, a arregimentação de pessoas em
torno de ideais políticos e econômicos que prometem um paraíso
terrestre. Da combinação dos dois surge um movimento que se afirma
como revolucionário, mas que de fato está incorporando elementos da
Escola Austríaca de economia, uma corrente de pensamento que tem mais de
150 anos e que já foi amplamente refutada por diversos autores, não só
de esquerda como de direita, e cujos preceitos praticamente deixaram
de ser aplicados desde a substituição do dinheiro baseado em padrão ouro
pela moeda fiduciária. No fim do dia o que temos é a propagação de uma
doutrina ultra-liberal que é extremamente interessante ao status quo.
Eu imediatamente identifiquei nesse movimento um caráter de artifício,
_astroturfing_.footnote:[AstroTurf® é uma marca de grama artificial nos
EUA. O termo _astroturfing_ foi criado para ironizar os movimentos
engendrados através de _marketing_ em contraposição aos movimentos
populares realmente espontâneos, que, em inglês, costumam ser chamados
de _grassroots_ (raízes de grama).] Claramente aquelas pessoas todas que
subitamente estavam descobrindo a mesma teoria econômica não podiam
fazê-lo de forma espontânea, ou estavam sendo pagas para difundir
aquelas ideias, ou tinham sido capturadas por uma estratégia de
_marketing_ (ou de lavagem cerebral, que dá no mesmo). Particularmente
preocupante foi o discurso de ódio de classes, que começou de forma
inocente nos tempos de Orkut, em comunidades como "Piores Perfis do
Orkut" e "Maldita Inclusão Digital". O ódio das classes média e alta
contra os pobres se tornou totalmente _mainstream_. Aqueles que duvidam
do conceito de luta de classes proposto por Marx precisam analisar mais
friamente o que vem acontecendo na internet no Brasil para verem como a
mecânica do antagonismo entre o proletariado e a burguesia se tornou
transparente.
A "conspiração anarcomiguxa" se tornou evidente por volta de 2011 e
2012, substituindo o "movimento ateu" que havia sido _fashion_ entre
2006 e 2010 (e do qual eu mesmo fui parte por um tempo, antes de
perceber que ele não levava a nada de bom). Sua principal característica
naquele momento inicial era o uso de meios tecnológicos (internet e
redes sociais) para difundir discursos ultraconservadores disfarçados de
revolucionários. Esses discursos incluíam:
[[conservadorismo-político]]
=== Conservadorismo Político
image:feminicidio.jpg[title="Difícil dizer contra exatamente o que esta mulher
está protestando", width="256", role="right"]
O brasileiro possui uma documentada a tendência ao conservadorismo,
cujos motivos parecem provir da religiosidade, da estrutura social
muito rígida e da _ausência em nossa história de momentos de quebra
da hierarquia_. Este conservadorismo pode ser visto, por exemplo, no
próprio dístico de nossa bandeira: "Ordem e Progresso".
Esse conservadorismo assume, em certos setores da sociedade, um medo
atávico de toda forma de mudança, rejeita todos os governos e partidos
não conservadores, mesmo os de centro-esquerda, tacha-os todos de
"estatistas", "socialistas", "comunistas" ou outras palavras que estejam
em voga para rotular e desqualificar o outro.
Uma rejeição tão extrema que chega a rejeitar todo fruto da esquerda,
sem reflexão sobre seu valor para a sociedade como um todo ou na negação
do papel da esquerda na obtenção de conquistas sociais, como os direitos
das mulheres.
[[anti-comunismo]]
=== Anti-Comunismo
image:petista-bom.jpg["Petista Bom", role="left", width="256"]
O Comunismo é o bicho-papão que a mídia e os políticos de extrema
direita usam para amedrontar os analfabetos políticos. Não importa se os
comunistas nunca foram fortes no Brasil, não importa se o governo é, de
fato, de um leve tom de rosa, em vez de vermelho.
O anti-comunismo leva, necessariamente, ao fascismo, pois os extremos se
tocam. O problema é que, no caso do Brasil, por não existir uma ameaça
comunista real, o anti-comunismo acaba sendo um falso pretexto para uma
radicalização.
image:bom-catolico.jpg["Bom católico não é comunista", role="left", width="256"]
O verdadeiro motivo do anticomunismo no Brasil é a luta de classes, é a
reação das elites a qualquer movimento em favor das classes populares,
mínimo que seja. A popularização do anti-comunismo leva ao fascismo e o
fascismo se reveste, no Brasil, de uma característica de ódio de classe
e de rivalidade regional. Ricos odeiam os pobres, sudestinos odeiam
nordestinos, sulistas odeiam o resto do Brasil, brancos odeiam pretos...
Uma das evidências do caráter fascistóide do anticomunismo brasileiro é
a sua estratégia de buscar legitimação através da religião, como pode ser
visto na imagem à esquerda.
image:mises-churchill.jpg["Mises e Churchill", role="right", width="256"]
A Escola Austríaca de economia vem se encaixar neste cenário porque
propõe o que pode ser claramente considerado _economic hate speech_
(discurso de ódio econômico), como foi definida em um fórum internacional
que não me recordo. Como todo liberalismo, ela nega a possibilidade de
uma ação social em favor do indivíduo, jogando sobre este toda a
responsabilidade de fazer-se e todo o infortúnio do próprio fracasso.
Mais do que isso, o minarquismo ao qual está relacionada conduz-nos
a uma situação em que o estado deve se retirar até mesmo de seus espaços
tradicionais de atuação, deixando os indivíduos, todos, à mercê de uma
espécie de "estado da natureza" hobbesiano.
image:hitler-gandhi.jpg["Hitler e Gandhi", role="right", width="256"]
Outra coisa que causa espécie é a popularidade aparente de Hitler no
Brasil, considerando que poucos de nós passaríamos pelo crivo nazista
de uma "raça pura". Há inúmeros sites e blogs (geralmente hospedados
no exterior) que elogiam o _führer_, como o http://legio-victrix.blogspot.com[Legio Victrix],
que publicou um artigo chamado
http://legio-victrix.blogspot.com.br/2011/04/o-fardo-de-hitler.html[O
Fardo de Hitler], de onde se extraem afirmativas tais como ele ser um
branco leal que defendeu o seu povo.
Este estranho amor por Hitler é ainda mais incompreensível se
considerarmos que são muitos os que argumentam que o fascismo e o
nazismo são de esquerda (e toda esquerda, obviamente, é comunista e
comedora de criancinha).
[[fascismo-é-esquerdismo]]
=== Fascismo É Esquerdismo
image:swastika.jpg["Foice, Martelo e Suástica", width=128, role="left"]
Como o fascismo é universalmente desprezado (e mais ainda o nazismo), a
direita tenta constantemente impingi-lo à esquerda, ignorando toda
evidência histórica (afinal o público alvo desta propaganda política é
completamente ignorante de História mesmo...). Depois e além disso, os
símbolos nazi-fascistas e/ou socialistas são usados para atacar todos
os projetos políticos de esquerda.
[[liberdade-pessoal]]
=== Liberdade Pessoal
Pelo menos em seus primeiros estágios, o movimento advogava pelos
direitos dos ateus, dos gays, das minorias, etc. Talvez por isto, e por
ainda conservar uma ideologia de liberdade de ação do indivíduo (o
extremo individualismo é parte do ancapismo), muitos membros dessas
minorias acabaram seduzidos e não se afastaram da ideologia nem mesmo
quando o movimento decaiu para a condenação das cotas raciais, o combate
à educação inclusiva, as leis de igualdade de gênero, as políticas de
proteção à mulher etc.
Isto nos leva a situações como a
https://www.youtube.com/watch?v=qbT85kXCbFg[desse rapaz], que é
homossexual mas se diz de extrema direita e apoia Jair Bolsonaro, o
mesmo homem que disse que preferia ver seu filho morto do que descobrir
que ele é homossexual.
[[fundamentalismo-econômico]]
=== Fundamentalismo Econômico
image:mises-marx.jpg["Mises Refutou Marx", width=256, role="right"]
As opiniões econômicas defendidas pelo movimento anarcomiguxo podem ser
qualificadas de "fundamentalistas" devido à maneira como encaram as
ideias de Adam Smith e, principalmente, de Ludwig von Mises. Embora esta
crítica também possa ser feita, de maneira limitada, à esquerda, o grau
de reverência prestado pelos anarcomiguxos a Mises vai muito além dos
marxistas mais ortodoxos. Ainda mais porque o anarcomiguxismo não se
aproveita profundamente dessas ideias, mas as difunde em "versículos"
avulsos, criando memes como "Mises Refutou Marx", que se propagam e
adquirem um valor de verdade sem que as pessoas realmente tenham lido
Marx, ou mesmo Mises.
image:bone.jpg[Boné, role="left", width=128]
Essas pessoas, que parecem crer em uma Mão Invisível regulando os
mercados, mesmo quando não creem em Deus, elegeram Marx, Keynes e Vargas
como os capirotos da vez, os demônios que devem ser exorcizados do
cenário político-ideológico nacional.
Elas chegaram ao ponto de tratar o texto original do principal trabalho
de Mises ("A Ação Humana") como uma espécie de texto sagrado que foi
salvo do nazismo ao ser "contrabandeado" para os EUA no fim da Segunda
Guerra Mundial.
[[anarco-capitalismo]]
=== Anarco-capitalismo
image:garschagen.jpg["Pare de Acreditar no Governo: Por que os
brasileiros não confiam nos políticos e amam o estado", role="right",
width=256]
A ideia de que o estado (ou pelo menos o estado brasileiro) é um inimigo
que precisa ser destruído (ou pelo menos castrado) se tornou viral nos
últimos anos, capitalizando a tradicional aversão do brasileiro a pagar
impostos (e quem gosta?). Propõe-se que o estado seja desmantelado e que
só restem as funções "mínimas" (quais seriam é objeto de certa
controvérsia, mas os mais exaltados chegam a dizer que até mesmo a
justiça e a defesa deveriam ser privadas).
O anarco-capitalismo é um sistema não somente utópico, mas também
impossivelmente contraditório, visto que ele prevê a permanência da
propriedade privada em um contexto no qual o estado supostamente
desapareceria. Isto não faz sentido porque a propriedade privada nada
mais é do que uma criação do estágio mais avançado do desenvolvimento
político da humanidade: o estado moderno (pós-medieval). Ela existiu
na Antiguidade em caráter embrionário, mas a forma de propriedade que
se pretende preservar não é a mesma que existiu nas antigas civilizações.
Na ausência do estado, caso a propriedade privada se mantenha, a única
solução possível para a contradição é a concentração da propriedade:
aqueles possuidores de menos propriedades e de menos poder voluntariamente
entregarão a sua propriedade a outros que detenham mais, buscando a sua
proteção. Já existiu um momento na história da humanidade em que este
movimento ocorreu: foi a transição da Antiguidade para a Idade Média,
e o resultado foi o Feudalismo. Vale lembrar que neste não havia realmente
"propriedade privada" como a conhecemos, visto que a propriedade não
possuía necessariamente um valor monetário e a maior parte das transações
que resultavam em transferências de propriedade ocorria por força de guerra,
tratados, doações ou simples roubo (nos casos micro).
O que podemos concluir disso é que os proponentes do anarco-capitalismo
não devem ser levados a sério como alternativa política, apenas como
agitadores que buscam desestabilizar o sistema político atual.
[[ayn-rand-e-o-objetivismo]]
=== Ayn Rand e o Objetivismo
image:galt.jpg[title="Cartaz fotografado nos protestos, contendo uma
frase do livro _A Rebelião de Atlas_, de Ayn Rand", width="256",
role="left"]
Praticamente desconhecida no Brasil antes de 2009, a escritora
Russo-Americana teve suas obras e ideias difundidas no Brasil desde
então. Inicialmente popularizada no seio do "movimento ateu" por uma
facção que dizia que "não é preciso ser comunista para ser ateu", as
obras da autora chamaram a atenção para o conceito do
anarco-capitalismo, que acabou ligando ao minarquismo e às ideias de
Ludwig von Mises.
_A Rebelião de Atlas_ pode ser resumido como a história de um
_lock-out_ das grandes empresas, que leva ao colapso da civilização,
enquanto os grandes empresários se protegem do caos em um refúgio
discreto no meio do deserto. Que uma obra contendo tais ideias se
torne popular com outros que não os próprios empresários já é um
sinal de que a máquina de propaganda da burguesia está a todo vapor.
[[como-essas-ideias-se-conectaram]]
== Como Essas Ideias se Conectaram
"Se você não for cuidadoso, a imprensa o fará odiar o oprimido e amar o
opressor."
-- Malcolm X.
Tudo começou com o "movimento ateu", que surgiu na virada do milênio. Eu
estive lá, eu vi o monstro nascer do ovo. Eu vi o
http://ceticismo.net/2013/11/21/contra-o-preconceito-dos-preconceituosos-que-preconceituam[despeito
pelas minorias] aparecer em lugares que deviam ser tolerantes, eu vi o
filme Zeitgeist aparecer e ser saudado como o prego definitivo no
metafórico caixão do cristianismo. Muitos ficaram tão excitados com ele
que o difundiram como se fosse um evangelho, e poucas vozes se
levantaram para gritar que o rei estava pelado.
Zeitgeist é odioso do começo ao fim, a menos que você esteja tão ansioso
para referendar sua descrença em Deus que aceite engolir sem filtrar
tudo que lhe reconforte. Assisti-lo é como ver uma versão em cores e um
pouco menos calhorda do
https://en.wikipedia.org/wiki/The_Eternal_Jew_%281940_film%29[Judeu
Eterno].
Claramente estruturado como uma peça de propaganda, o filme tem uma
primeira parte que apela a pessoas progressistas (por promover o
ateísmo), uma segunda parte que apela a pessoas esquerdistas (por
espalhar a ideia de que o governo americano é mau a ponto de atacar o
próprio povo) e uma terceira parte que traz o velho antissemitismo
revestido de uma "nova" forma, apenas não mencionando que os "banqueiros
internacionais" são judeus porque isso seria óbvio demais como
referência aos "Protocolos dos Sábios de Sião". Esta mesma terceira
parte propõe como "libertação" desta maligna ordem internacional
exatamente a doutrina econômica da Escola Austríaca que, neste contexto,
é praticamente um discurso de ódio econômico, ou uma expressão
ideológica da luta de classes (porque justifica o status quo como fruto
de uma meritocracia e de uma "ação humana" essencialmente moral e
natural).
Zeitgeist foi engendrado de forma a levar pessoas progressistas (ateus e
críticos dos EUA) a difundir uma ideologia fascista e antissemita sem
que percebessem! Eis a essência da análise do artigo do
http://thethirdestate.net/2010/03/zeitgeist-exposed[Third Estate].
"Peter Joseph" (ou seja lá quem for que tenha realmente criado
Zeitgeist) posteriormente renegou o filme (mas não parou de promovê-lo
através do seu site, apenas incluiu um _disclaimer_ tão relevante que a
maioria das pessoas que continuaram seguindo o "Movimento Zeitgeist" nem
sabe que o filme não importa mais tanto assim). Renegou-o porque era
supostamente "sem foco" e então o foco foi buscado, ao criar o
"Movimento Zeitgeist", baseado nas ideas do "Projeto Vênus", de Jacque
Fresco.
Podemos descrever tanto o PV como o MZ como "utopias tecnocráticas e
minarquistas". Ambos são claramente ideologias de quinta-coluna que são
difundidas pelo terceiro mundo para deslegitimar a política tradicional,
infundir uma admiração pelo tecnocrata e preparar terreno para o passo
seguinte, as Cidades-Estado (_Charter Cities_) de Paul Romer.
[[img-honduras]]
.Cartum publicado em jornal dos Estados Unidos satiriza a proposta de estabelecimento de uma cidade modelo (_charter city_) em Honduras, após o golpe de 2010.
image::honduras.jpg["Welcome to New Honduras", role="text-center"]
Posteriormente o PV percebeu que estava sendo usado sem que ganhasse
nada com isso e houve um rompimento. Quando isso aconteceu, o PV já
tinha deixado de ser útil ao MZ, que dele se vampirizara todo um
conjunto ideológico e uma série de propostas que passara a aperfeiçoar,
e o próprio MZ deixara de ser útil à "conspiração anarcomiguxa", que se
preparava para passar ao estágio seguinte. Por causa disso, os protestos
de Jacque Fresco foram ouvidos exatamente por ninguém e foram somente
estas as pessoas que deram importância às fortes palavras que ele usou.
Por volta de 2011, quando o golpe hondurenho já tinha se consolidado,
começou a transição da ideia de uma tecnocracia autossustentável em
pequena escala para o projeto de cidades tecnocráticas autogovernadas
que deveriam ser criadas em países pobres para serem chamarizes de
desenvolvimento local.
Uma _charter city_ seria organizada através do seguinte processo:
1. Um país do terceiro mundo, desejando desenvolver-se, reserva uma
área (preferencialmente costeira) para o estabelecimento de uma
cidade-livre. A área cedida pode ter ou não infra-estrutura construída,
o que dá a entender que pode ser transferida uma área livre _ou uma
cidade pre-existente_. Este país é chamado de "receptor".
2. Um país desenvolvido, disposto a transferir recursos humanos e
tecnológicos, assume a propriedade desta área e a popula com indivíduos
de sua escolha (o que dá a entender que a população original seria
expulsa). Os novos habitantes da cidade livre seriam escolhidos de forma
a preencher os papeis esperados na estrutura econômica que se constrói,
e a cidade livre deveria começar _sem excessos de população ou
infra-estrutura_ (o que mais uma vez dá a entender a expulsão da
população local original). Este país é chamado de "doador".
3. Ao ceder a propriedade da área escolhida, o país receptor assina com
o país doador um tratado (_charter_) pelo qual ficam estabelecidos os
direitos e obrigações das duas partes, dos indivíduos que residirão na
área e dos indivíduos que residirão ao redor da área. Este tratado,
assinado entre os dois países, será a base legal para a organização
administrativa da cidade (o que deixa subentendido que a entidade assim
criada não terá um processo político democrático, pois no terá a
permissão de escrever a sua própria constituição).
4. Um terceiro país, que pode ser o mesmo segundo ou não, assume o
papel de "garantidor" (no caso de o país doador não ser capaz de
garantir militarmente os seus direitos). O papel do país garantidor é
evitar que o país receptor reocupe a área cedida ou que o país doador
não cumpra suas obrigações para com o país receptor (que normalmente
incluirão o pagamento de algum tipo de arrendamento, entre outras
coisas). Não se sabe de que forma um terceiro país aceitaria tal encargo
sem ganhar nada. Desta forma, desde o primeiro momento, eu critiquei a
ideia das _charter cities_ dizendo que o país garantir só poderia ser o
mesmo doador, o que tornaria a cessão uma ocupação colonial pura e
simples, ou então seria um terceiro país com interesses investidos na
cidade, o que o tornaria um co-doador e nos reduziria de novo à situação
colonial.
5. O desenvolvimento da cidade-estado assim constituída resultaria, a
longo prazo, em benefício para o país hospedeiro, pois ao fim do prazo
de arrendamento a cidade retornaria à sua posse (tal como Hong Kong
voltou à China) com a sua infra-estrutura, sua tecnologia e seus novos e
"melhores" habitantes.
Que ninguém tenha visto nisso uma reedição do "fardo do homem branco" é
um depoimento comovente sobre a cegueira das pessoas que prestaram
atenção nisso. Mas essa foi a primeira proposta de utopia
anarco-capitalista a se tornar _mainstream_. Descaradamente inspirado em
cidades-feitoria estabelecidas pelos portugueses e ingleses ao longo de
sua história colonial, o projeto foi inicialmente proposto em Honduras,
onde um governo ultradireitista substituiu o projeto popular de Manuel
Zelaya. A ideia de converter o mundo inteiro em uma série de felizes
cidades-estado verdes foi aqui substituída pelo projeto de entregar
partes de seu país ao capital internacional e cobrar
aluguel.footnote:[Seixas, Raul. "Aluga-se". In: Abre-te Sésamo!
CBS/1980.]
A ideia das _charter cities_ é uma reedição desavergonhada da "Política
das Portas" através da qual o Império Britânico se consolidou. Onde
houvesse portos e estreitos importantes para o comércio internacional,
lá os ingleses estabeleceram uma colônia, até que quase todo o comércio
internacional passava por gargalos controlados pelos ingleses. Foi assim
que controlaram as Ilhas do Canal, Gibraltar, Chipre, Somalilândia,
Iêmen, Omã, Estados da Trégua (Emirados Árabes Unidos), Cingapura, Hong
Kong, Belize, Costa dos Mosquitos, Cidade do Cabo...
Esta "utopia ancap" serviu ao propósito de apresentar a ideologia
neoliberal dominante como uma força de desenvolvimento, mas também como
uma "ideia perseguida", afinal as utopias são válvulas de escape para
aqueles que não se conformam com o mundo. A existência de uma "utopia do
status quo" é algo ao mesmo tempo inédito na história e uma prova do
quanto as técnicas de propaganda política começadas por Goebbels já
evoluiram até nós.
O passo seguinte é transformar essas ideias em um produto de massas:
image:roubo.jpg["Camisetas do Instituto Mises", role="left", width="256"] Como essa
camiseta vendida pelo Instituto Mises Brasil e o boné citado anteriormente.
Tangibilizar a ideologia que normalmente seria detestável, transformando-a
em um produto _fashion_ é uma forma, assim, de conectar-se com as massas,